Vadiando pelas
palavras
Nesta noite eu me
encontrei
E tive que parar de ler o
poema
Porque o gato
Borges eu encontrei
Cara metido a
besta! Chegou enfiando o focinho cor de rosa entre as páginas do livro que
eu estava lendo, bem embaixo da lua cheia, para espairecer do susto que havia
tomado algumas horas antes, lá em casa.
Estava eu fazendo
minha toalete tranquilamente, sentado na cadeira em frente ao nosso laptop,
quando ela o pega no colo e começa a ler em voz alta, enquanto o Marido prepara
o jantar:
- Segundo o
Dicionário Houaiss SEGREDO pode ser um: meio oculto, processo
particular e eficaz para alcançar um objetivo; maneira especial para conseguir
um dado efeito...
- O que é isso que
você está lendo Laura?
- Pois vou
descobrir agora Alê, tendo uma conversinha com o Nelson! O que isso quer dizer
senhor gato? Quer dizer que você tem um segredo e achou que eu não ia
descobrir?
Minha língua ficou
estática na limpeza da pata dianteira. Minhas íris só não ficaram maiores
porque vazariam pelas órbitas, e minha orelhas quase colaram no meu pescoço de
medo dela achar que estava ficando louca ou nunca mais me deixar chegar perto
do computador e da nossa biblioteca.
Mas tudo acabou
bem, graças a Bast, a deusa egípcia felina que me protegeu enquanto contava para
a Laura – este é o verdadeiro nome da minha dona – sobre a minha vida secreta.
E ela, me contando como eu fui descoberto. Foi um ato falho tão estúpido, mas sei
que já tenho duas fieis leitoras. Amo vocês, Paula e Gigi Tomate!
Como usei a caixa
de e-mails da Laura para divulgar meu blog, elas foram as primeiras leitoras
que detectaram o erro de revisão. Eu usei o nome dela ao invés do falso, então
as duas alertaram sobre a falha (obviamente pensando ser ela a escritora); e o segredo foi revelado. Aí ela acessou o blog, leu e releu,
riu, usou o Facebook para divulgar mais ainda minha obra e esperou a hora certa
para me abraçar, beijar e me apertar de orgulho e satisfação em saber que eu me
desenvolvi tanto a ponto de ler todos os seus livros – e os do Marido também - e
escrever meu próprio blog. Tenho certeza que os dois conversaram sobre o
ocorrido, porque já peguei ele tentando me flagrar escrevendo, mas o tolinho
não se toca que só faço isso quando estou sozinho. Meu lema é: privacidade e concentração é
tudo para uma boa criação. Mas qualquer dia eu vou jogar no computador dele
para ver se ele gosta!
Tudo acabou bem,
exceto pelo fato de que Borges, um gato branco que mora do lado da minha casa,
se aboletou no muro e acabou interrompendo minha leitura.
E eu detesto ter
minha atenção desviada para algo que seja outro gato, afinal, eu sou o único
gato no mundo que pode interromper as próprias atividades!
- Quase
Borges? Só pode ser “quase” mesmo, porque inteiramente Borges só eu e o
Jorge.
- Que Jorge, Borges?
- Luis Borges!
- Anh?! É Jorge, é
Luis ou é Borges?!
- São todos em um
só: Jorge Luis Borges, black cat!
- Ah Borges, como
você é enxerido né? Eu sei quem é o Jorge Luis Borges, e este livro é de poemas
dele, traduzidos pelo Augusto de Campos.
- Este Augusto é
um gato novo na vizinhança é? Nunca ouvi falar...Só sei que meu nome foi
inspirado no escritor argentino. Fiquei orgulhoso quando comecei a ler as suas
narrativas surrealistas e mágicas, tudo a ver com o universo felino... Mas não
conhecia seus poemas! Me empresta?
- Ué sabichão, não
sabe tudo sobre o seu xará, o Jorge Luis Borges? O grande poeta,
tradutor, crítico e ensaísta brasileiro Augusto
de Campos traduziu 20 poemas dele, mantendo os originais ao lado das traduções,
deixando ao leitor mais atento (como eu) a possibilidade de caminhar pelos
labirintos artísticos percorridos por ele para chegar a este belíssimo livro. Estava sendo magnífica minha leitura, até você me interromper, bem
no último parágrafo da entrevista que o Augusto fez com o Borges em 1984,
quando tentou a sorte tocando a campainha da casa dele. Imagino que o Borges
gostou da ideia de bater papo com outro poeta e eu estava adorando ler, até
você chegar...Posso terminar, ou não?
- Pode, claro que
pode! Mas lê em voz alta ao menos um poema? E me empresta o livro quando
terminar?
Estes dois Borges
que cruzaram o meu caminho são realmente fantásticos e sedutores. Borges, o
gato, percebeu que ficaria meu amigo exaltando minha voz rouca e bela. Além,
claro, de conhecer os textos do Jorge Luis Borges que eu ainda não li. Este
último me deixou curioso para conhecer mais profundamente sua produção literária
quando descobri que ele também foi bibliotecário, como a minha musa e dona.
Fiquei feliz em saber que tenho um novo amigo tão apaixonado por livros quanto eu,
a Laura e o Jorge Luis Borges!
Segue para você
leitor, o poema que melodiosamente interpretei ao gato Borges:
LIMITES
Dos caminhos que
estendem o poente
Um (não sei qual)
há de ser percorrido
A última vez, por
mim, indiferente,
E sem que o
adivinhe, submetido
A Quem prefixa
onipotentes normas
E uma secreta e
rígida medida
Às sombras,
imaginações e formas
Que destecem e
tecem esta vida
Se para tudo há
término e há compasso
E última vez e
nunca mais olvido,
Quem nos dirá de
quem, em nosso espaço,
Sem sabê-lo, nos
temos despedido?
Sob o cristal já
gris, a noite apaga;
Do alto dos livros
que um borrão tisnado
Da sombra espalha
pela mesa vaga,
Algum deles jamais
será folheado.
Há no Sul um
portão enferrujado
Com grandes jarras
de alvenaria
E tunas que a mim
estará vedado
Como se fosse uma
litografia.
Para sempre
fechaste a porta certa
E há um espelho
que te aguarda insano;
A encruzilhada te
parece aberta
E a vigília,
quadrifonte, Jano.
Entre as memórias
sempre existe aquela
Que se perdeu um
dia no horizonte;
Não se verão
descer àquela fonte
Nem o alvo sol nem
a lua amarela.
Não achará tua voz
o tom que o persa
Deu à língua de
aves e de rosas,
Quando ao ocaso,
ante a luz dispersa,
Queiras dizer as
coisas mais preciosas.
E o incessante
Ródano e o lago,
Todo o ontem sobre
o qual hoje me inclino?
Tão perdido estará
como Cartago
Que no fogo e no
sal viu o latino
Creio ouvir na
manhã atarefado
Rumor de uma
longínqua multidão.
É tudo o que foi
caro e olvidado;
Espaço e tempo e
Borges já se vão.
Quando terminei,
os olhos do Borges estavam marejados. E os meus também. O silêncio só foi
cortado por um sapato que voava por uma janela em nossa direção. Óbvio que
alguns humanos ouviram apenas miados esganiçados. A arte e o amor pelos felinos ainda não
tocou seus corações. Mas sempre há tempo...
Até a próxima postagem, agora vou me alimentar deste cálido sol de outono. E você deveria fazer o mesmo!